Esperança de melhorar de vida ao ingressar no ensino superior tem sido adiada para muitos profissionais
Natália aprendeu a ler e escrever em casa, lar simples chefiado pela mãe, em Canindé, interior do Ceará. Só entrou na escola aos 10 anos, num contexto de escassez de tudo. Imaginar uma faculdade, então, era desejar um “futuro melhor”. Mas não tem saído como planejado.
Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Barros, 24, prolongou a permanência no curso para conseguir se sustentar e fugir da onda de desemprego que já afoga mais de meio milhão de cearenses.
“Pra quem vem de um contexto de pobreza e rural, a faculdade é um lugar muito simbólico, de mudança de vida. Eu pensava, antes, que me formar, por si só, me garantiria um emprego.” – NATÁLIA BARROS, 24 anos
A falta de perspectivas se alargou com a chegada da pandemia, que virou o mercado de trabalho ao avesso em diversas áreas de atuação. Ano passado, Natália chegou a trabalhar como educadora social no programa Médico Sem Fronteiras, mas por pouco tempo.
Legenda: Diante da falta de perspectivas do mercado, Natália tem adiado a formatura em Psicologia | Foto: Arquivo pessoal |
Hoje, a canindeense mora em uma das residências universitárias da UFC e conta com as políticas de permanência da instituição – como o recebimento de bolsa – para permanecer estudando enquanto não se reinsere no mercado.
O desemprego, hoje, representa não só uma dificuldade de permanecer vivo materialmente, como de se sustentar nas suas escolhas, em anos que investiu numa carreira. Hoje, o desemprego significa não saber sobre o futuro.
“APRESSEI A FORMATURA, MAS NÃO FUI CONTRATADO”
Para o engenheiro ambiental Lucas Martins, 27, a falta de oportunidades sólidas na área de atuação já se prolonga desde 2018, quando se formou. Hoje pós-graduando, o jovem aguarda a 2ª dose da vacina anticovid para “sair e buscar emprego de qualquer coisa”.
“Falavam muito que área ambiental era o futuro. Pensei que me formaria e arrumaria um emprego, até apressei a formatura, e acabou que não fui contratado. Porque contratar um engenheiro é muito caro, preferem os técnicos”, lamenta.
Paulista radicado em Mombaça, no interior cearense, Lucas se formou no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) de Quixadá, imaginando que, pelo respaldo da instituição, teria fácil abertura no mercado – “mas isso hoje nem conta muito”, reflete.
O jovem chegou a conseguir um emprego no município de Senador Pompeu, onde atuou como engenheiro por 5 meses, em 2019, para executar o processo de licenciamento ambiental. “Mas para concluir, precisava ser concursado, e me demitiram”, relembra.
“Quando saí do emprego, acabei ficando como cuidador dos meus avós, que estavam doentes. Eu precisaria sair da minha cidade pra tentar um emprego na minha área.” – LUCAS MARTINS, 27 anos
O desemprego, aliás, tem feito Lucas recuar da certeza sobre a opção profissional – ou, como observou Natália, no início desta reportagem, tem tornando difícil para ele sustentar as escolhas que fez. O jovem vive, hoje, na casa dos pais, com as economias que fez quando estava empregado.
“Queria fazer algo importante pro mundo. Mas com a cabeça de hoje, vendo a realidade, talvez eu não fosse pra essa área. Não porque não gosto, mas por oportunidades. Como vou sobreviver? Teoricamente, como engenheiro formado em federal, você vai se dar bem. Saí nessa expectativa”, lamenta o jovem.
“A TURMA TINHA 35 ALUNOS, SÓ 7 SE FORMARAM”
O receio de não conseguir emprego tem afetado trajetórias desde a graduação, como relata Thays Soares, 26, que desde o meio do curso de Biblioteconomia, no qual se formou há quatro anos, já havia decidido prestar concursos públicos.
“Estava mais ou menos no 4º semestre quando tive noção de como funciona o mercado de trabalho: as vagas não são preenchidas por competência, mas por indicação. Então decidi que queria ser servidora, fazer concurso público”, afirma.
Em 2019, dois anos após se formar, a jovem chegou a trabalhar em uma faculdade privada de Fortaleza, mas foi demitida em dezembro do ano passado “no corte que a empresa fez devido à pandemia”.
“Eu realmente não achei que seria tão difícil, e isso não é algo só meu: muitos colegas sentem isso. Minha turma tinha 35 pessoas, só 7 se formaram. Porque não tem mercado.” – THAYS SOARES, 26 anos
Para se sustentar, hoje, Thays trabalha com revisão de trabalhos acadêmicos, “um extra que já fazia há muito tempo”, e com gerenciamento de mídias sociais. “A maioria dos meus colegas não trabalha na área de formação. Faço isso enquanto estudo pra concurso público, que é o meu foco”, frisa.
“IMPACTO É PARA TODA A VIDA”
A professora Alesandra Benevides, doutora em Economia e coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral, aponta que os prejuízos da falta de inserção de jovens no mercado podem cruzar gerações.
Dentre as possíveis razões do paradoxo entre formação e falta de oportunidades estão a “desconexão da universidade com o mercado” e a multiplicação de cursos privados, “de qualidade duvidosa”, voltados a “profissões que estão em decadência”.
“Muitos cursos são caça-níqueis, para atrair quem não teve oportunidade de ingressar no ensino superior. Há muita gente se formando em áreas que estão em decadência. Além disso, há uma divergência entre a teoria ensinada na universidade e a prática do mercado”, critica.
A professora pontua que há um “descasamento” entre as habilidades do profissional que se forma e o que o mercado exige, fazendo com que, muitas vezes, a pessoa ocupe um cargo que está abaixo da formação que possui, para não ficar desempregada – fenômeno batizado de “overeducation”.
“Há um prejuízo econômico e social, vários jovens estão nessa situação. Eles poderiam ter maior qualidade de vida, acesso a bens culturais, dar uma melhor educação aos futuros filhos, mas estão ocupando essas posições.” – ALESANDRA BENEVIDES, Professora e doutora em Economia
Alesandra relata que vê os próprios alunos compartilharem as aflições do período de formatura, e reconhece que o cenário “é frustrante e afeta o psicológico dos que estão sem perspectivas”.
Segundo ela, o estudante precisa ter a visão de como está a fronteira entre o conhecimento e o que o mercado exige, e procurar se adequar e especializar – processo que não deve ser solitário, porque depende de auxílio das universidades e faculdades para acontecer.
“A universidade precisa mostrar os possíveis caminhos, que cada profissão tem suas demandas e possibilidades, ter esse mapeamento. O problema é que ela não mostra, e os estudantes precisam buscar”, reflete.