Há medidas importantes da Prefeitura, mas também manipulação para que os alunos tenham bons resultados na prova específica, deixando outras habilidades de lado.
Não se chega a verdades no atual estágio de evolução humana, como explicado em texto publicado aqui na CartaCapital. Há diferentes perspectivas, umas mais e outras menos completas e condizentes com os eventos.
Para redigir este texto, buscou-se juntar depoimentos de diferentes agentes envolvidos na educação de Sobral (CE) para, assim, montar um cenário bem rico em informações e condizente com o que acontece no município.
Quando a informação pareceu frágil, quando ela partiu de um único agente, foi deixada de lado e usada apenas na sistematização das ideias. Os fatos trazidos neste texto foram expostos por mais de um agente que atua na educação de Sobral há anos. A pedido deles, por dizerem ser muito comum retaliações do grupo político no poder, suas identidades ficarão em sigilo.
Praticamente ninguém em Sobral nega que há um período antes e outro depois de Cid Ferreira Gomes, que foi prefeito de 1997 a 2005, por dois mandatos consecutivos, reeleito em 2001 com 68% dos votos. O município era muito pobre, modesto, como a imensa maioria dos municípios do País, e ganhou alguma infraestrutura, cresceu e se desenvolveu, como nunca a população da região norte do Ceará tinha visto.
Não se deve esquecer, contudo, que, no período final do governo de Cid, de 2003 a 2005, Lula já era o Presidente da República. Era o início do boom das commodities, quando o País passou a ter altos crescimentos do PIB, sendo um período de bonança, sobretudo para os aliados do PT.
Essa bonança continuou pelo menos até 2013, devendo-se atribuir boa parte do razoável sucesso dos Ferreira Gomes em Sobral a um intenso apoio dos governos federal e estadual. Com a crise econômica a partir de 2014, o município se afundou em desemprego e outros problemas.
Sobral progrediu, mas está longe de ser um município desenvolvido. A economia gira, em grande parte, em torno da Grendene, indústria de calçados instalada na cidade em troca de obscenos incentivos fiscais da União Federal e do Estado do Ceará (75% a menos de ICMS, benefício da guerra fiscal e, portanto inconstitucional, conforme jurisprudência consolidada do STF) mantidos até hoje, que desequilibram a concorrência, e a empresa agradece por meio de gordos “investimentos” nas campanhas dos Ferreira Gomes, como 1 milhão de reais doado por Alexandre Grendene na campanha de Ivo Gomes a prefeito em 2016. Ciro Gomes era o governador do Ceará quando a Grendene recebeu o incentivo fiscal e se instalou na cidade em 1993.
Sobral é ainda extremamente desigual, ficando os seus distritos e bairros distantes quase esquecidos. A cidade como um todo não tem transporte público adequado, sequer existe uma rede de ônibus, mas há vans privadas operando, quase sempre de propriedade de políticos; o lixo está espalhado por toda a cidade, que não tem boa rede de coleta, muito menos seletiva; a violência é bem preocupante; e assim por diante.
Durante o mandato de Cid, Ivo, o seu irmão mais jovem e atual prefeito, teve participação relevante como chefe de gabinete e secretário de Desenvolvimento da Educação. Não há como negar os grandes avanços da educação de Sobral em Português e Matemática nesse período.
No ano de 2000, 48% da população era analfabeta ou chegava ao final do ensino fundamental sem ler adequadamente, e hoje, especialmente por conta do Programa (municipal) de Alfabetização na Idade Certa, que inspirou o programa nacional, afirma-se que o analfabetismo foi quase extinto.
Como de costume no Brasil, Sobral focou pouco na Educação de Jovens e Adultos (EJA), havendo, sim, ainda relevante quantidade de adultos analfabetos e semianalfabetos no município, o que dificulta uma boa educação das crianças e adolescentes, pois ela se inicia e termina dentro de casa, na rua, nas relações que cada indivíduo trava no seu dia a dia. O pior é que, como se verá, o analfabetismo e o semianalfabetismo não se resumem aos adultos.
No Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), Sobral passou de 4,0 em 2005, para 4,9 em 2007, 6,6 em 2009, 7,3 em 2011, 7,8 em 2013 e 8,8 em 2015. O Ideb foi criado em 2007 pelo então ministro da Educação, Fernando Haddad, durante o segundo mandato de Lula, e tem sido utilizado, em regra, como o único “norte” pelos municípios e escolas para medição da qualidade da educação. Foi uma boa iniciativa, mas precisava ter sido complementada por outros índices capazes de medir os demais aspectos fundamentais da educação e por medidas que desincentivassem a sua manipulação.
Por ser considerado o índice de qualidade da educação pública, transformou-se em informação para uso político/eleitoral. Quando se aumenta a nota no Ideb, o político divulga isso como uma grande vitória sua na administração. Assim, o índice é muito manipulado. Havendo mais índices, o político precisará olhar para todos eles, incentivando resultados educacionais mais completos e dificultando uma percepção distorcida sobre os avanços de cada município.
Em Sobral, é difícil de negar que a redução da influência política na escolha de diretores das escolas, atestada na tese de graduação de Tábata Amaral apresentada em Harvard, aliada ao acompanhamento individual de cada aluno contra a evasão, a processos constantes de qualificação dos professores e a uma remuneração variável pelo atingimento de resultados no Ideb levou a um aumento de qualidade da educação no que toca ao Ideb.
Aqui é preciso ter muita atenção. O Ideb mede o aprendizado em Português e Matemática multiplicado pela proporção de alunos aprovados. Em Sobral, no ano de 2015, a nota de aprendizado foi 8,79, num total de 10, e a aprovação foi 1,00, o que significa reprovação zero, algo quase impossível. Como poderia não ter sido reprovado nenhum ou quase nenhum aluno do 5º ano fundamental de toda a rede pública com dezenas de escolas?
Essa manipulação do Ideb quanto à aprovação não acontece apenas em Sobral, mas em praticamente todos os municípios do País. A nota real de quase todos é, portanto, menor do que efetivamente aparece no Ideb, que já é um índice fraco por si só. Sobral se destaca por ter, de fato, realizado medidas administrativas boas, mas também por ter manipulado engenhosamente o Ideb, o que afirmam diversos educadores do própria sistema público do município.
Quanto ao aprendizado, também há manipulações, segundo os educadores. Todo o programa é focado em Português e Matemática, disciplinas do Ideb, ficando as demais matérias em segundo plano ou em plano nenhum.
Um professor de História contou que recebe alunos de outra escola e pergunta quem era o professor deles antes, então eles frequentemente respondem que mal viam a disciplina, o que o deixa desacreditado e triste com o sistema.
O processo de ensino de Sobral foi moldado para preparar os alunos para a Prova Brasil, que gera o resultado do Ideb, deixando em segundo plano a verdadeira educação dele. É claro que isso varia de acordo com cada diretor, com cada professor, mas é uma realidade presente e até bem conhecida em Sobral, constatada por inúmeros educadores, e provavelmente também acontece em outros municípios.
Poder-se-ia alegar, então, que, ao menos, os alunos estavam fazendo a mesma prova de todos e se saindo melhor. De fato, parte dos alunos da educação fundamental de Sobral, sobretudo do 5o ano, estão obtendo bons resultados em Português e Matemática sob o ângulo do que é cobrado na Prova Brasil. Resta saber exatamente como.
A pergunta seguinte deve ser: é esta a educação de qualidade que o País busca? Deve-se lembrar do analfabetismo que se tinha em Sobral e da qualidade da educação brasileira em geral. Pensando-se com o olhar da mediocridade, só de ter a maioria da população alfabetizada e fazendo cálculos já é um começo.
Por outro lado, se o objetivo é preparar cidadãos críticos, fazer o País se desenvolver economicamente de forma sustentável, permitir que os alunos da educação pública compitam com os alunos da educação privada (igualdade) e, ainda mais difícil, permitir que eles compitam internacionalmente com alunos de países desenvolvidos, a educação precisa ir muito mais longe do que o Ideb é capaz de levá-la.
O boom no Ideb de Sobral não está fortemente refletido num boom na igualdade de renda, nem da igualdade entre alunos da escola pública e privada, nem num grande boom de produtividade econômica, pois o Ideb lida apenas com aquilo que é muito básico, ou seja, saber ler e interpretar minimamente, e fazer cálculos matemáticos simples.
A tara pelo Ideb tem, contudo, deixado em segundo plano: a) um bom ensino de ciências, fundamental para desenvolver habilidades de pesquisa científica, criação, inovação etc., gerando complexidade econômica e desenvolvimento; b) um bom ensino de história, sociologia e filosofia, fundamental para se entender a dinâmica dos fatos, a evolução do mundo e das pessoas, as causas dos acontecimentos, compreender as relações sociais, refletir sobre os por quês etc.; c) um bom ensino focado nas habilidades, como empatia, liderança, respeito, resiliência, criatividade, humildade, cooperação, dinamismo etc.; d) um bom ensino de línguas, que permita a conexão dos estudantes com as vanguardas de conhecimento, com as relações econômicas internacionais etc.
Mais de 80% dos alunos da escola pública não ingressam nas universidades, mesmo apesar de serem “gênios” pelos critérios do Ideb. Boa parte nem consegue ingressar na escola técnica.
Uma administradora de faculdade privada de Sobral mencionou que os alunos da escola pública que lá chegam, mesmo os egressos das chamadas “escolas modelo”, são extremamente aquém dos demais, de modo que ela tem uma visão muito mais negativa do que a do próprio autor sobre a manipulação dos resultados do Ideb.
Ao tratar da aplicação do Pisa que será realizada em Sobral brevemente, este autor foi informado na Prefeitura que os alunos receberiam uma preparação para fazer a prova. Os estudantes não deveriam ser preparados. Para que a prova obtenha um resultado o mais próximo da realidade, o ideal é que eles nem saibam que a realizarão até alguns dias antes.
A preparação pode gerar distorções na avaliação do conhecimento obtido na escola, e esse tipo de preparação específica “super especial” sobralense acontece para a prova do Ideb.
Sobre a educação de Sobral, conclui-se que houve boas medidas administrativas ao longo do tempo e que parte do sucesso se deve a decisões tomadas na gestão de Cid Gomes com apoio do seu irmão e atual Prefeito Ivo Gomes.
No entanto, o imediatismo da política, a falta de um mais rigoroso senso moral, o conhecimento atrasado e outros fatores parecem ter levado – e é preciso investigar – os administradores públicos de Sobral a tomarem medidas excessivamente focadas nos resultados do índice, e não tanto numa educação de excelência, que prepare os alunos da escola pública para serem sujeitos altamente honestos, humanos, para entrarem em universidades, caso assim desejem, e para se destacarem na economia.
É preciso que outros índices sejam criados no Brasil: um semelhante ao Pisa, que foque também em habilidades mais relacionadas às ciências; outro que meça o conhecimento da história, da sociedade e a capacidade de reflexão; outro mais focado nas habilidades e nos aspectos morais; outro focado em línguas, sobretudo inglês; ou um mesmo índice pode tentar apreender todos ou alguns desses aspectos a partir dos sub-índices.
Sobral e outros municípios que estejam seguindo o mesmo rumo devem mudar urgentemente, e isso poderia ser dirigido pelo governo federal. Do modo como está, com a educação toda pautada no Ideb, os brasileiros saberão talvez ler, mas não saberão, em regra, criticar, não saberão a história, os impactos sociais, refletir “fora da caixa”, ser resilientes, dinâmicos etc. Além disso, saberão apenas calcular as suas dívidas, que poderão ser muitas, pois não conseguirão, em regra, investigar cientificamente, empreender, se comunicar com o mundo por línguas estrangeiras etc.
A história de Sobral mostra que, com alguma administração eficiente e ideias elementares, foi possível obter algum desenvolvimento na educação, ainda que tenham sido deixadas carências enormes até hoje, mesmo apesar de os Ferreira Gomes terem o poder há 20 anos, sem intervalo.
Isso prova que, em alguns anos de mandato muito bem administrado, com muita honestidade e ótimas ideias, seria possível realizar uma verdadeira revolução em um município, mesmo com todas as dificuldades financeiras e outras. Isso não acontece porque os administradores públicos têm, em regra, uma “moral frouxa”, pouca preparação intelectual e quase nenhuma imaginação, ainda que haja graus muito diferentes entre eles.
Nessa escala, aparentemente os Ferreira Gomes se colocam num nível de qualidade mais elevado do que a média, porém ainda distantes do adequado para se ter um país sério, intelectualizado, menos desigual e economicamente desenvolvido.
(Via Carta Capital)