• 21 de November de 2024

Famosos nas redes sociais, o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Carlos Alberto da Cunha, de 43 anos, conhecido como Da Cunha, simulou operações e inventou a prisão de um chefe de uma organização criminosa paulista, em 2020, para criar vídeos para o canal que mantém no YouTube.

Em uma das gravações, realizada em julho do ano passado, o delegado aparece executando uma operação de resgate na comunidade de Nhocuné, Zona Leste da capital. A vítima, um homem sequestrado no dia anterior por um criminoso membro de uma facção, seria submetida ao chamado “tribunal do crime”, mas é libertada pelo agente e o suspeito é preso.  

Em depoimentos obtidos pelo jornal Folha de S. Paulo, policias envolvidos na operação e a própria vítima declararam que a cena não passou de uma encenação, uma de muitas interpretadas por Da Cunha no exercício da função com intuito de ganhar seguidores nas redes sociais. 

Na operação realizada na comunidade paulista, a vítima já fora libertada momentos antes por outros polícias civis, identificados como Patrick e Ronald, mas foi instruída a voltar para o cativeiro, em poder do sequestrador, para que a simulação em que o delegado é responsável pela prisão fosse filmada.

Segundo a vítima, Da Cunha afirmou que a encenação era necessária para a produção de prova material que seria anexada no processo. 

“Acreditando que realmente se tratava de prova policial, aceitou e foi deixado pelos policiais novamente dentro da casa com o traficante. […] Acha que isso foi uma falha dos policiais, pois foi deixado no mesmo local que uma pessoa perigosa e ele poderia ter pego uma faca para lhe ferir”, declarou a vítima, que teve o nome preservado, segundo trecho de depoimento em poder do Ministério Público.  

“Depois soube que a gravação não era para o processo, mas, sim, para o canal do YouTube do delegado Da Cunha e isso lhe deixou extremamente indignado, especialmente porque o delegado mentiu sobre a gravação. […] Frisa que o que policial que realmente o libertou do cativeiro [nem] sequer participou daquela gravação”, acrescentou, no início deste mês.  

Foto: reprodução/Facebook

Dois policias civis que participaram da simulação confirmaram a fraude. Um deles era o então braço-direito de Da Cunha na equipe da Central Especializada de Repressão a Crimes e Ocorrências Diversas (Cerco), o delegado Denis Ramos de Carvalho. O outro era o chefe dos investigadores, Renato Araújo de Lima.

Segundo os depoimentos dos agentes, ambos tentaram convencer o delegado a desistir da ideia da encenação. Eles ainda detalharam que a simulação postada nas redes sociais foi a segunda feita por eles — na primeira, os policiais esqueceram de tirar as algemas do sequestrador. 

COMPARECIA NOS DIAS COM OPERAÇÕES

Ainda conforme o Carvalho, Da Cunha praticamente só comparecia ao trabalho nos dias em que operações eram realizados, com intuito de filmar a ação. Nos outros dias ele afirmava estar ocupando produzindo conteúdo para o canal no YouTube. 

Lima confirmou que o agente geralmente só ia ao trabalho nos dias de operações. Ainda segundo ele, as encenações como a da comunidade de Nhocuné eram rotineiras, e mesmo quando não participava diretamente de uma ação de sucesso, Da Cunha aparecia no local com uma equipe particular de reportagem. 

Foto: reprodução/Facebook

O comportamento do delegado incomodou parte da equipe do Cerco, e dois policiais pediram transferência. 

“Pediram para serem transferidos diante daquela situação vexatória de simulação de ocorrências que já haviam sido realizadas legitimamente por policiais civis apenas para dar visibilidade de forma inverídica ao dr. Carlos Alberto da Cunha, que se portava mais como um repórter/apresentador e ainda simulando ser o autor das ocorrências policiais, desprezando o trabalho das equipes policiais do Cerco”, diz trecho do depoimento de Lima.

ENRIQUECIMENTO ILÍCITO

As declarações integram o inquérito da Promotoria que apura o suposto enriquecimento ilícito de Da Cunha. Os promotores desejam apurar se ele usou a estrutura da Polícia Civil para proveito próprio, como ganhar dinheiro monetizando vídeos de operações oficiais, o que seria irregular. 

O delegado já negou, em outras oportunidades, que tenha monetizado os conteúdos sobre as operações e afirmou que só o fez após ser afastado da função. 

Da Cunha foi afastado do cargo em julho deste ano após a Corregedoria abrir uma série de procedimentos contra ele, a maioria por suposto uso indevido das redes sociais. Em seguida, ele pediu licença sem vencimento e se filiou ao MDB com intuito de disputar um cargo eletivo. Segundo ele, quer ser governador.

PRISÃO DE CHEFE DE FACÇÃO 

Outro envio de sucesso no canal do delegado é a suposta prisão do Jagunço do Savoy, que seria chefe de uma organização criminosa paulista que tinha a missão de assassinar o chefe da Polícia Civil de São Paulo, o delegado-geral Ruy Ferraz Fontes.

Segundo o investigador-chefe, a Polícia nunca prendeu o criminoso. Em abril de 2020, um homem chamado Wislan Ramos Ferreira, 29 anos, foi detido, mas ele não se tratava do Jagunço do Savoy, esclareceu Lima.

Foto: reprodução/Facebook

O investigador afirmou que, ao contrário do que consta no boletim de ocorrência da prisão de Ferreira, Da Cunha não teve acesso aos manuscritos do Ministério Público com a ordem para que o Jagunço do Savoy matasse o delegado-geral.

Em depoimento ao MP, Ruy Ferraz Fontes, o suposto alvo, afirmou que o delegado mentiu. Disse ainda que, conforme o relatório de visualizações do YouTube, o canal do delegado afastado ganhou projeção justamente com a veiculação da falsa prisão do Jagunço do Savoy.

“O relatório torna claro que o dr. Carlos Alberto da Cunha somente tornou-se uma celebridade no YouTube veiculando o vídeo noticiando que havia prendido o tal ‘Jagunço’ encarregado de matar o depoente, que é o delegado-geral de Polícia, conforme se depreende dos documentos ora juntados e relatórios policiais demonstrando que se trata de uma mentira que expõe toda a instituição da Polícia Civil e tumultua os trabalhos da instituição policial”, declarou. 

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